Fonte: Symposium of Episcopal Conferences of Africa and Madagascar (SECAM) |

Por uma parceria que traga justiça aos povos africanos: Declaração conjunta com vista à 7ª Cimeira UA-UE

A 7ª Cimeira UA-UE, que se realiza no Ano das Reparações da UA, deve oferecer reparações pelas injustiças históricas e pela exploração infligida ao continente africano

Apelamos aos governos europeus a reconhecerem que grande parte da dívida acumulada é ilegítima, injusta e insustentável

ACRA, Gana, 11 de november 2025/APO Group/ --

Neste Ano Jubilar de 2025 – um ano especial de perdão e reconciliação que a Igreja Católica celebra a cada 25 anos – e prestes a começar a década de reparações da União Africana, saudamos a 7ª Cimeira UA-UE como uma oportunidade para trabalhar em conjunto nos elementos constitutivos de uma parceria equitativa entre as duas regiões.

Falando a partir das experiências diretas das nossas comunidades e das pessoas que servimos, entre elas as que vivem na pobreza e na fome, os agricultores, os pescadores, os pastores, os Povos Indígenas, as mulheres e os jovens, aproveitamos esta ocasião para defender uma parceria justa e responsável entre a UA e a UE. Reafirmamos o nosso compromisso com a justiça social, ambiental e global, ao mesmo tempo em que denunciamos as falsas soluções climáticas e um modelo de desenvolvimento baseado no extractivismo e na mercantilização da natureza.

Apelamos aos líderes reunidos em Luanda a colocar a dignidade dos nossos povos no centro das relações UA-UE. Para tal, são necessárias escolhas decisivas em vários domínios. Reconhecemos os esforços de muitas iniciativas da UE para ajudar a promover o desenvolvimento humano. Ao mesmo tempo, porém, ao constatarmos que várias dessas iniciativas parecem reproduzir padrões extractivistas do passado, compartilhamos as nossas preocupações quanto ao crescente foco da UE nos seus interesses geopolíticos e econômicos, em detrimento da justiça e da solidariedade para com os povos africanos, das suas necessidades e das suas aspirações. Seguir este caminho não conduziria a uma verdadeira parceria, uma parceria que procura resolver os desequilíbrios existentes e está orientada para um verdadeiro benefício mútuo.

Nesta declaração, queremos, portanto, abordar em particular alguns dos principais desafios que vemos nas áreas das parcerias em matéria de energia e clima, Global Gateway, sistemas alimentares e dívida, e oferecer perspectivas sobre como a ação conjunta nessas áreas pode servir melhor o objetivo do desenvolvimento humano integral.

De acordos energéticos extractivistas a parcerias justas e sistemas energéticos democráticos

A corrida às matérias-primas críticas (CRM) está a devastar territórios, a sacrificar comunidades e corre o risco de reforçar padrões históricos de extractivismo. Está a decorrer no âmbito de sistemas que colocam o lucro acima das pessoas e que tratam a terra, a água e os minerais – os alicerces da vida na Terra – como mercadorias para o lucro estrangeiro e não como bens comuns a serem administrados com cuidado e para benefício de todos.

Nesse contexto, os países africanos procuram romper com os padrões históricos de extração e de dependência das mercadorias, a fim de manterem em seu solo uma maior parte da transformação dos seus próprios recursos e para criarem mais adição de valor local a nível interno. Isso exige uma parceria industrial diferente entre os países europeus e africanos, em que a Europa não recorra a uma abordagem excessivamente protecionista do tipo “a Europa primeiro”. Tal abordagem comprometeria o potencial de reforço dos laços entre ambas as regiões, enfraqueceria as relações comerciais da UE numa conjuntura crítica, contrariaria os objectivos de beneficiamento local da África e a realização do seu verdadeiro potencial, e comprometeria os objectivos climáticos e ambientais globais. Os decisores políticos europeus têm de reconhecer que a agenda de segurança da cadeia de abastecimento da UE não pode ser alcançada apenas através da transformação interna e que uma verdadeira parceria com os países africanos só pode ser construída se estiver alinhada com as ambições de adição de valor local da África.

De um modo geral, a cooperação da UE com os países africanos em matérias-primas críticas (CRM) está a decorrer no âmbito de quadros não vinculativos, como o pacote de investimento Global Gateway, as parcerias estratégicas no âmbito da Lei das Matérias-Primas Críticas e as parcerias de comércio e investimento limpos. É também influenciada pelos acordos de comércio livre da UE, que incluem disposições juridicamente vinculativas que, muitas vezes, deixam pouca abertura para países parceiros manterem controle sobre os seus recursos minerais. Para serem melhores parceiros, a UE e os governos europeus devem traduzir em ações concretas o apoio declarado da UE à adiçao de valor local nos países africanos. Isto inclui chegar em um acordo sobre uma definição comum clara de “valor acrescentado”, estabelecer compromissos específicos e vinculativos de assistência técnica e financeira sobre o compartilhamento de conhecimentos, tecnologia e competências e utilizar mecanismos sólidos de monitoramento e cumprimento.

Para que a parceria Europa-África promova uma gestão equitativa, responsável e sustentável dos recursos minerais, é também essencial reconsiderar o modelo global de produção de energia e garantir que os benefícios associados à produção de energias renováveis e de minerais, como as receitas e o emprego, sejam sentidos pelas comunidades locais e pelos países produtores.

Os megaprojetos de energia renovável, muitas vezes impostos sem uma consulta adequada com aas populações locais, concentram o poder econômico, não são transparentes e destroem os ecossistemas. Em vez disso, as relações bi-regionais devem promover sistemas de energias renováveis democráticos e descentralizados, com gestão comunitária e enraizados nos territórios locais. A parceria UA-UE pode fazê-lo (1) reforçando a participação pública no financiamento, propriedade e controle dos projectos de energias renováveis, (2) concentrando-se em projectos de pequena escala que visem os mais desfavorecidos, (3) apoiando a economia cooperativa e social (como as comunidades de energias renováveis), (4) defendendo os direitos e conhecimentos dos povos indígenas, (5) reforçando as capacidades de monitoramento e cumprimento das normas sociais e ambientais, e (6) concebendo projetos para os mercados nacionais e regionais e não apenas para exportação.

Da produção industrial de alimentos à agroecologia

A fome não é um problema de produção, é uma questão de justiça, relacionada à distribuição de recursos e ao acesso ao financiamento. A fome, a subnutrição e a insegurança alimentar persistem hoje na África, em grande parte devido à lógica e às prioridades de um modelo de desenvolvimento concebido para maximizar o crescimento económico. A agricultura industrial, marcada pela monocultura, pela produção em grande escala e pela utilização de tecnologias avançadas, de insumos químicos, de sementes geneticamente modificadas ou híbridas e de fertilizantes sintéticos, centra-se no aumento da produção alimentar para maximizar os rendimentos econômicos, favorecendo a acumulação de lucros pelas grandes empresas agrícolas. Ela contribui para as emissões de gases de efeito estufa, a poluição da água e do ar, a perda de biodiversidade e a degradação dos solos. Ela afasta-se dos regimes alimentares tradicionais e diversificados e tem impacto na saúde humana. Ela permite a concentração e o abuso de poder por parte do agronegócio em grande escala e marginaliza os pequenos agricultores da tomada de decisões. Ela desconsidera o conhecimento ancestral e incorporado e as diversas experiências, visões do mundo e tradições locais, e mina a soberania alimentar e das sementes e a auto-determinação das comunidades locais.

A parceria UA-UE deve apoiar uma transformação da agricultura que se liberte dessa forma de exploração e extração e da dependência de fertilizantes importados, insumos químicos e sementes geneticamente modificadas. Isto inclui a promoção da agroecologia – um modelo testado e comprovado de resiliência climática entre as comunidades rurais, o que a UE poderia ajudar a fazer, estabelecendo orientações claras e vinculativas e orientando os canais de financiamento da UE para o apoio à agroecologia.

Essa transformação inclui também a proteção e a promoção de sistemas de sementes geridos pelos agricultores que permitam a preservação das espécies de culturas tradicionais, o desenvolvimento de variedades locais adaptadas às necessidades específicas dos agricultores, a autossuficiência dos agricultores e a gestão ambiental. Esses sistemas estão enraizados em conhecimentos, valores e sabedoria construídos ao longo de milhares de anos e constituem uma base sólida para as pessoas responderem às suas próprias necessidades de alimentos saudáveis e culturalmente adaptados.

Criminalizar os agricultores por guardarem e trocarem sementes ou impor regimes rígidos de propriedade intelectual ou agendas empresariais viola tanto os seus direitos como as necessidades do planeta.

Essa transformação exige ainda coerência política e o fim da duplicidade de critérios. Os pesticidas cuja utilização na agricultura europeia é proibida devido aos danos que causam à saúde das pessoas ou ao ambiente não devem continuar a ser produzidos para exportação para fora da UE, incluindo África.

Apelamos aos líderes reunidos em Luanda para que deixem de se concentrar na produção, na eficiência e no lucro e trabalhem em conjunto num modelo agrícola organizado de forma a abordar questões de justiça, promover uma distribuição equitativa dos recursos e proteger os nossos ecossistemas.

Do consumo excessivo à sobriedade alegre

A mudança para fontes de energia renováveis, o aumento da eficiência energética e o investimento na agroecologia têm um papel importante a desempenhar, mas não são suficientes. O alinhamento com os limites do planeta exige políticas ambiciosas de suficiência energética.

As recentes parcerias da UE com os países africanos no domínio da energia e do clima foram concebidas com base em previsões da demanda de minerais que pressupõem um aumento significativo do consumo de energia na Europa. Essas parcerias carecem de esforços sérios para combater o consumo excessivo na Europa, o que seria essencial para reduzir a pressão social e ambiental sobre os países ricos em recursos e para cuidar da nossa casa comum. Os europeus devem reconhecer que, a partir de um certo nível, um maior consumo material não está associado a uma melhoria do bem-estar e que não podem continuar a sustentar um modelo econômico que explora pessoas e recursos sem limites. A parceria UA-UE deve basear-se no reconhecimento dos limites ecológicos do planeta e colocar no seu centro o cuidado com a vida em todas as suas formas.

Apelamos aos líderes europeus a reconhecerem a sua responsabilidade histórica pela transgressão dos limites do planeta e a adoptarem políticas que visem à redução da demanda, da produção e do consumo, o que reduziria mais rapidamente a dependência excessiva da UE em relação à energia importada – aumentando a sua resistência à potenciais choques – e evitaria novos impactos sociais e ambientais nos territórios africanos. Isso inclui a redução das indústrias ecologicamente destrutivas na Europa e o estabelecimento de objectivos vinculativos de redução da pegada material da UE. Esses são passos necessários e concretos para garantir o que é necessário para uma vida digna para os europeus, para os africanos, para todos.

Da armadilha da dívida à justiça da dívida

A atual crise da dívida é a pior da história, afetando mais de 40 países africanos. Muitos gastam mais de 20% ou mesmo 30% das receitas públicas no serviço da dívida externa, enfrentando a escolha impossível entre pagar juros de dívidas insustentáveis e investir na educação, na saúde e na ação climática. Isso também leva os países africanos cujas economias estão orientadas para a exportação a intensificar a extração e a exportação de recursos naturais para cumprir as obrigações de pagamento da dívida (em dólares americanos), em vez de organizarem a sua economia com base nas necessidades de consumo interno, na tomada de decisões democráticas, na autodeterminação e na proteção do meio ambiente.

A atual crise não surgiu por coincidência ou apenas devido a fatores internos. Muitos países africanos herdaram a dívida acumulada pelas suas autoridades coloniais e muitas das antigas colônias foram obrigadas a pagar compensações aos antigos governantes europeus pela perda de rendimentos resultante da libertação das pessoas escravizadas. Na ausência de uma governança democrática internacional da dívida, o processo de contração de novos empréstimos ou de renegociação das dívidas existentes tem-se desenrolado em condições altamente desfavoráveis para os países africanos, com os credores a deterem demasiado poder e as negociações a serem levadas a cabo sem transparência, regras normalizadas ou envolvimento suficiente da sociedade civil. Os custos excessivos dos empréstimos têm sido fortemente influenciados pelo setor do crédito, dominado pelas poderosas agências de notação de risco ocidentais. O Quadro Comum do G20 para o Tratamento da Dívida não produziu os resultados esperados, sendo lento, orientado para os credores e inadequado à finalidade.

Perante esse modelo que concentra o rendimento e aumenta a pobreza, apelamos aos líderes africanos a não aceitarem mais a dívida unilateral e os mecanismos de liquidação da dívida que não se destinam a libertar as sociedades africanas. Apelamos aos governos europeus a reconhecerem que grande parte da dívida acumulada é ilegítima, injusta e insustentável.

A Europa tem a responsabilidade de apoiar as iniciativas de alívio da dívida. Apelamos os líderes da cimeira a levarem a sério os apelos à reestruturação urgente da dívida, bem como à anulação da dívida, a ser implementada sem condições de política económica. O êxito da Iniciativa a favor dos Países Pobres Altamente Endividados (PPAE) demonstrou que a dívida pode, de facto, ser cancelada, e o cancelamento da dívida não deve ser um meio de usurpar a soberania econômica dos países sobrecarregados por condições de dívida injustas e insustentáveis. Além disso, os líderes devem apoiar a criação de uma Agência Africana de Notação de Risco para superar o atual oligopólio das agências de notação de risco e apoiar as reformas do mercado financeiro internacional e da regulamentação bancária que prejudicam os países do Sul global.

Fazemos igualmente eco dos principais relatórios recentes sobre a dívida – o Relatório do Jubileu sobre a Dívida, a Declaração da Cidade do Cabo (http://apo-opa.co/3JMFnHB) da Iniciativa de Alívio da Dívida dos Líderes Africanos, a Declaração de Lomé (http://apo-opa.co/43mWeY5) da UA – que lançam um apelo inequívoco a reformas sistémicas da arquitetura financeira internacional. Neste Ano do Jubileu, esperamos que os líderes europeus dêem seguimento aos resultados da 4ª Conferência sobre o Financiamento do Desenvolvimento (http://apo-opa.co/3LBZ3yk) e apoiem o apelo da UA para a criação de um mecanismo de resolução da dívida a nível da ONU. Esse mecanismo proporcionaria um espaço de deliberação democrática sobre as regras que regem a contração e a concessão de empréstimos e obrigaria todos os credores (públicos, multilaterais e privados) a reunirem-se e a aceitarem condições vinculativas que favorecessem o desenvolvimento sustentável.

Acabar com a armadilha da dívida não é uma questão de generosidade, mas sim de justiça e de uma verdadeira parceria, e de fazer uma escolha estratégica para investir na estabilidade global.

Das estratégias de investimento centradas na UE ao desenvolvimento centrado nas pessoas

Romper com os padrões históricos de extração e dívida insustentável exige também a revisão do modelo do Global Gateway. O Pacote de Investimento África-Europa do Global Gateway, apesar de, em princípio, ter sido concebido para reforçar a parceria com África e acelerar a sua Agenda 2063, continuou a ser largamente orientado pela UE, com prioridades concebidas em Bruxelas e projetos que reflectem os interesses estratégicos da Europa em garantir matérias-primas essenciais, importações de energia e controle da migração, em vez da agenda de desenvolvimento da África.

O Global Gateway foi concebido para ajudar a “criar oportunidades de mercado” para as empresas europeias, fornece financiamento principalmente através de empréstimos e carece de mecanismos sólidos de transparência e de participação da sociedade civil, bem como de um controle publicamente responsável das infraestruturas críticas. Esse modelo contradiz o objetivo principal da cooperação para o desenvolvimento da UE, que consiste em erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades, e está em contradição com os Tratados da UE e com o Regulamento relativo ao orçamento externo da UE. Ele corre o risco de desviar recursos públicos escassos da redução da pobreza e das desigualdades nos locais e países que mais precisam deles e em setores como a saúde, a educação e a proteção social.

Em vez disso, precisamos de um modelo centrado na soberania, na autossuficiência, na transparência, na liderança local e na adição de valor local. Na prática, isto significa projetos de parceria público-público, financiamento baseado em subvenções, prioridade às empresas locais, um quadro juridicamente vinculativo em matéria de direitos humanos e de meio ambiente e um papel ativo da sociedade civil local na seleção, concepção e execução de todos os projetos.

Com vista a uma parceria que traga justiça aos povos africanos

A 7ª Cimeira UA-UE, que se realiza no Ano das Reparações da UA, deve oferecer reparações pelas injustiças históricas e pela exploração infligida ao continente africano. Os europeus devem reconhecer as causas profundas dos problemas atuais e que o legado do colonialismo e da escravidão continua a moldar as lutas das economias extractivas e as crises da dívida. As medidas concretas tomadas pela UE no que respeita à mais-valia local, aos sistemas energéticos democráticos, à promoção de princípios e práticas agroecológicas, bem como à resolução da dívida, são fundamentais para resolver as causas profundas da pobreza e da desigualdade na África – nem a ajuda para o desenvolvimento, nem os investimentos são suficientes – e fazem todas parte de um processo de resolução das injustiças históricas. É assim que os líderes europeus podem abrir caminho para uma relação construtiva com os países africanos. É assim que a parceria UA-UE pode estar ao serviço da vida.

Comissão das Conferências Episcopais da União Europeia (COMECE)

Simpósio das Conferências Episcopais de África e Madagáscar (SECAM)

Caritas África

Caritas Oriente Médio e Norte da África

Caritas Europa

CIDSE (Cooperação Internacional para o Desenvolvimento e a Solidariedade)

Distribuído pelo Grupo APO para Symposium of Episcopal Conferences of Africa and Madagascar (SECAM).